- [«inviabilidade» transferida para a Figura...] :
[Reis] Vai sentar-se à secretária, mexe nos seus papéis com versos, odes
lhes chamou e assim ficaram, porque tudo tem de levar seu nome, lê aqui
e além, e a si mesmo pergunta se é ele,
este,
o que os escreveu, porque lendo não se reconhece
no que está escrito, foi outro esse desprendido, calmo e resignado homem, por isso mesmo
quase deus, porque os deuses é assim que são, resignados, calmos, desprendidos, assistindo mortos. De um
modo confuso pensa que precisa de organizar a sua vida, o tempo, decidir que uso fará de manhã, tarde e
noite, deitar
cedo e cedo erguer, procurar
um ou dois restaurantes que sirvam uma comida sã e simples, rever e emendar os poemas para o livro
de um futuro dia, procurar casa para
consultório, conhecer gente, viajar pelo país, ir ao Porto, a Coimbra, visitar
o doutor Sampaio, encontrar por
acaso Marcenda no Choupal, neste momento
deixou de pensar em projectos e intenções, teve pena da inválida, depois a pena transferiu-se para si mesmo, era piedade de
si mesmo, Aqui
sentado, estas duas palavras
escreveu-as como o princípio de um poema, mas logo se lembrou de que em um dia
passado escrevera, Seguro assento na coluna firme
dos versos em que fico, quem um tal testamento redigiu alguma vez não pode ditar
outro contrário. […]
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, pp.
[sublinhados acrescentados]