- E, no «639», hoje, 19, excertos das obras de Saramago, «centrados» no motivo da Mão [...]
- O primeiro, de O Ano da Morte... , «quase todo», com um «código de cores «semelhante ao usado nos anos finais dos Qd.os:
A rapariga fica de perfil, o homem está de costas, conversam em voz baixa, mas o tom dela
subiu quando disse, Não, meu pai, sinto-me bem, são portanto pai e filha, conjunção pouco
costumada em hotéis, nestas idades. O criado veio servi-los, sóbrio mas familiar de modos,
depois afastou-se, agora a sala está silenciosa, nem as crianças levantam as vozes, estranho
caso, Ricardo Reis não se lembra de as ter ouvido falar, ou são mudas, ou têm os beiços
colados, presos por agrafes invisíveis, absurda lembrança, se estão comendo. A rapariga
magra acabou a sopa, pousa a colher, a sua mão direita vai afagar, como um animalzinho
doméstico, a mão esquerda que descansa no colo. Então Ricardo Reis, surpreendido
pela sua própria descoberta, repara que desde o princípio aquela mão estivera imóvel,
recorda-se de que só a mão direita desdobrara o guardanapo, e agora agarra a esquerda e vai
pousá-la sobre a mesa, com muito cuidado, cristal fragilíssimo, e ali a deixa ficar, ao lado
do prato, assistindo à refeição, os longos dedos estendidos, pálidos, ausentes. Ricardo Reis
sente um arrepio, é ele quem o sente, ninguém por si o está sentindo, por fora e por dentro da
pele se arrepia, e olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe aonde há de ir se a
não levarem, aqui a apanhar sol, aqui a ouvir a conversa, aqui para que te veja aquele senhor
doutor que veio do Brasil, mãozinha duas vezes esquerda, por estar desse lado e ser canhota,
inábil, inerte, mão morta mão morta que não irás bater àquela porta. [...]
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis,
10.ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1993, pp. 26-27