segunda-feira, 19 de abril de 2021

Reis, «Inviável»

 - [«inviabilidade» transferida para a Figura...] :

[Reis] Vai sentar-se à secretária, mexe nos seus papéis com versos, odes lhes chamou e assim ficaram, porque tudo tem de levar seu nome, aqui e além, e a si mesmo pergunta se é ele, este, o que os escreveu, porque lendo não se reconhece no que está escrito, foi outro esse desprendido, calmo e resignado homem, por isso mesmo quase deus, porque os deuses é assim que são, resignados, calmos, desprendidos, assistindo mortos. De um modo confuso pensa que precisa de organizar a sua vida, o tempo, decidir que uso fará de manhã, tarde e noite, deitar cedo e cedo erguer, procurar um ou dois restaurantes que sirvam uma comida sã e simples, rever e emendar os poemas para o livro de um futuro dia, procurar casa para consultório, conhecer gente, viajar pelo país, ir ao Porto, a Coimbra, visitar o doutor Sampaio, encontrar por acaso Marcenda no Choupal, neste momento deixou de pensar em projectos e intenções, teve pena da inválida, depois a pena transferiu-se para si mesmo, era piedade de si mesmo, Aqui sentado, estas duas palavras escreveu-as como o princípio de um poema, mas logo se lembrou de que em um dia passado escrevera, Seguro assento na coluna firme dos versos em que fico, quem um tal testamento redigiu alguma vez não pode ditar outro contrário. […]

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, pp. 

[sublinhados acrescentados]