quarta-feira, 21 de junho de 2023

O Motivo da Mão no «639», II

 - recorte do segundo excerto, do «Memorial...»:

Nem sempre o trabalho corre bem. Não é verdade que a mão esquerda não faça falta. Se Deus pode viver sem ela, é porque é Deus, um homem precisa das duas mãos, uma mão lava a outra, as duas lavam o rosto, quantas vezes já teve Blimunda de limpar o sujo que ficou agarrado às costas da mão e doutro modo não sairia, são os desastres da guerra, mínimos estes, porque muitos outros soldados houve que ficaram sem os dois braços, ou as duas pernas, ou as suas partes de homem, e não têm Blimunda para ajudá-los ou por isso mesmo a deixaram de ter. É excelente o gancho para travar uma lâmina de ferro ou torcer um vime, é infalível o espigão para abrir olhais no pano de vela, mas as coisas obedecem mal quando lhes falta a carícia da pele humana, cuidam que se sumiram os homens a quem se habituaram, é o desconcerto do mundo. Por isso, Blimunda vem ajudar, e, chegando ela, acaba-se a rebelião, Ainda bem que vieste, diz Baltasar, ou sentem-no as coisas, não se sabe ao certo.  Uma vez por outra, [...]

José Saramago, Memorial do Convento, 27.ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1998, pp. 91-92.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

O Motivo da Mão no «639»

 - E, no «639», hoje, 19, excertos das obras de Saramago, «centrados» no motivo da Mão [...]

- O primeiro, de O Ano da Morte... , «quase todo», com um «código de cores «semelhante ao usado nos anos finais dos Qd.os:

A rapariga fica de perfil, o homem está de costas, conversam em voz baixa, mas o tom dela subiu quando disse, Não, meu pai, sinto-me bem, são portanto pai e filha, conjunção pouco costumada em hotéis, nestas idades. O criado veio servi-los, sóbrio mas familiar de modos, depois afastou-se, agora a sala está silenciosa, nem as crianças levantam as vozes, estranho caso, Ricardo Reis não se lembra de as ter ouvido falar, ou são mudas, ou têm os beiços colados, presos por agrafes invisíveis, absurda lembrança, se estão comendo. A rapariga magra acabou a sopa, pousa a colher, a sua mão direita vai afagar, como um animalzinho doméstico, a mão esquerda que descansa no colo. Então Ricardo Reis, surpreendido pela sua própria descoberta, repara que desde o princípio aquela mão estivera imóvel, recorda-se de que só a mão direita desdobrara o guardanapo, e agora agarra a esquerda e vai pousá-la sobre a mesa, com muito cuidado, cristal fragilíssimo, e ali a deixa ficar, ao lado do prato, assistindo à refeição, os longos dedos estendidos, pálidos, ausentes. Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o sente, ninguém por si o está sentindo, por fora e por dentro da pele se arrepia, e olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe aonde há de ir se a não levarem, aqui a apanhar sol, aqui a ouvir a conversa, aqui para que te veja aquele senhor doutor que veio do Brasil, mãozinha duas vezes esquerda, por estar desse lado e ser canhota, inábil, inerte, mão morta mão morta que não irás bater àquela porta. [...] 

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 10.ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1993, pp. 26-27

sexta-feira, 2 de junho de 2023

«Aquilo era mais batata...» = «A frase mais portuguesa de sempre» - M. E. C.

  - toda e qualquer a referência ao «Bacalhau Espiritual» remete R. para a C. da C. (78-80), para a Chefe Clot. [...] [«e o resto não se diz»]

RECORTE inicial da Crónica de hoje - «A conversa mais portuguesa»:
Finalmente descobri a frase mais portuguesa de sempre, aquela que define a nossa nacionalidade.
A frase é: "Aquilo era mais batata do que outra coisa." Só um português sabe o que a frase esconde: uma queixa antiquíssima que corresponde a uma insatisfação insatisfazível. É a insuficiência de bacalhau.
A insuficiência de bacalhau: dá para uma tese de doutoramento.
Estamos a pôr o dedo numa das grandes feridas da nossa cultura quotidiana – a pôr o dedo e a escarafunchar, para doer mais ainda. [...]
Miguel Esteves Cardoso, «Público», 02-06-2023