sábado, 30 de setembro de 2023

«falar com a boca toda»

 RECORTE (a seguir ao anterior):

     [..] Em criança, quando me esforçava por me exprimir numa linguagem pura, tinha a impressão de me lançar no vazio.
    Um dos meus terrores imaginários, ter um pai professor que me obrigasse a falar bem permanentemente, realçando as palavras. Falávamos com a boca toda.
     Como a professora me «repreendia», mais tarde eu quis repreender o meu pai, dizer-lhe que «deslargar» ou «há anos atrás» não existiam. Entrou numa cólera violenta. Noutra ocasião: «Como quer que eu não seja repreendida, se fala sempre mal!» Eu chorava. Ele ficava infeliz. Tudo o que se refere à linguagem é, na minha recordação, motivo de rancor e de  troça dolorosa [...]
     
Annie Ernaux,  Um lugar ao sol seguido de Uma mulher, 2022, p. 46

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

«medo terrível da palavra dúbia»

      RECORTE(S):
     O patoá tinha sido a única língua dos meus avós. Há quem aprecie o «pitoresco do patoá» e do Francês popular. É assim que Proust encarava com enlevo as incorrecções e os vocábulos antiquados de Françoise. Somente lhe importava a estética, porque Françoise era sua criada e não sua mãe. A ele, nunca acudiu espontaneamente aos lábios esse tipo de linguagem.
    Para o meu pai, o patoá era algo velho e feio, um sinal de inferioridade. Orgulhava-se de ter podido desembaraçar-se dele em parte, ainda que o seu francês não fosse impecável, mas era francês. [...]
     Comunicativo no café, em família, diante das pessoas que falavam bem calava-se, ou interrompia-se a meio de uma frase e dizia «não é assim» ou apenas «não», com um gesto de mão para convidar a pessoa a compreender e prosseguir em vez dele. Falar sempre com precaução, um medo terrível da palavra dúbia, desse efeito tão pernicioso como dar um traque. [...]

Annie Ernaux,  Um lugar ao sol seguido de Uma mulher, 2022, p. 45

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

«Para o que lhe havia de dar» OU «o problema da colocação dos pronomes» (M. E. C.)

 - Crónica de hoje - Recorte(s):

“Para o que havia de dar-lhe!” exclamou o professor estrangeiro, justamente vaidoso da fluência do seu português. E logo os tugas saltaram-lhe todos para cima e emendaram-no em uníssono: “Para o que lhe havia de dar! Para o que lhe havia de dar, Teddy, para o que lhe havia de dar!”
Como castigo, tivemos de sofrer uma longa exposição do Teddy, em que chorava os anos que tinha perdido a aprender a nossa língua, e o volume perdido de O Problema da Colocação de Pronomes [1917] de Cândido de Figueiredo, que nunca tinha conseguido recuperar e que, se calhar, estava na origem daquele erro tão ofensivo.
[...]
É com certeza parente do Ao que isto chegou, e primo em terceiro grau do Só faltava [mais] esta.

Para mim, o dar ainda é mais giro do que o haverDe onde virá esta dádiva?