sábado, 30 de setembro de 2023

«falar com a boca toda»

 RECORTE (a seguir ao anterior):

     [..] Em criança, quando me esforçava por me exprimir numa linguagem pura, tinha a impressão de me lançar no vazio.
    Um dos meus terrores imaginários, ter um pai professor que me obrigasse a falar bem permanentemente, realçando as palavras. Falávamos com a boca toda.
     Como a professora me «repreendia», mais tarde eu quis repreender o meu pai, dizer-lhe que «deslargar» ou «há anos atrás» não existiam. Entrou numa cólera violenta. Noutra ocasião: «Como quer que eu não seja repreendida, se fala sempre mal!» Eu chorava. Ele ficava infeliz. Tudo o que se refere à linguagem é, na minha recordação, motivo de rancor e de  troça dolorosa [...]
     
Annie Ernaux,  Um lugar ao sol seguido de Uma mulher, 2022, p. 46