segunda-feira, 19 de abril de 2021

Reis, «Inviável»

 - [«inviabilidade» transferida para a Figura...] :

[Reis] Vai sentar-se à secretária, mexe nos seus papéis com versos, odes lhes chamou e assim ficaram, porque tudo tem de levar seu nome, aqui e além, e a si mesmo pergunta se é ele, este, o que os escreveu, porque lendo não se reconhece no que está escrito, foi outro esse desprendido, calmo e resignado homem, por isso mesmo quase deus, porque os deuses é assim que são, resignados, calmos, desprendidos, assistindo mortos. De um modo confuso pensa que precisa de organizar a sua vida, o tempo, decidir que uso fará de manhã, tarde e noite, deitar cedo e cedo erguer, procurar um ou dois restaurantes que sirvam uma comida sã e simples, rever e emendar os poemas para o livro de um futuro dia, procurar casa para consultório, conhecer gente, viajar pelo país, ir ao Porto, a Coimbra, visitar o doutor Sampaio, encontrar por acaso Marcenda no Choupal, neste momento deixou de pensar em projectos e intenções, teve pena da inválida, depois a pena transferiu-se para si mesmo, era piedade de si mesmo, Aqui sentado, estas duas palavras escreveu-as como o princípio de um poema, mas logo se lembrou de que em um dia passado escrevera, Seguro assento na coluna firme dos versos em que fico, quem um tal testamento redigiu alguma vez não pode ditar outro contrário. […]

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, pp. 

[sublinhados acrescentados]

domingo, 18 de abril de 2021

«Os mestres do inútil», Tolentino Mendonça

 - crónica de Tolentino Mendonça, no último «Expresso», termina com referência a Saramago:

 RECORTE final:

[...] Ora, esta consciência, que nos chega pelo espanto, pode-nos chegar também pelo sentimento de fracasso que, por vezes, nos toma. Na última entrevista do sociólogo Zygmunt Bauman, [..] a dada altura fala-se de José Saramago como de um mestre admirado. E Bauman refere o significado que teve para ele o encontro com uma página diarística escrita por Saramago aos 86 anos, em que este confessa sem filtros o seu falhanço. As intuições a que havia chegado não pareciam ter influência alguma no curso da história. Por consequência, fazia a si mesmo (fazia contra si mesmo) uma drástica pergunta: porquê, então, pensar? A resposta de Saramago iluminou Bauman: nós pensamos porque não conseguimos evitar, não somos capazes de atravessar o mundo de outra maneira. O pensamento é um exercício humilde e espontâneo, um facto equivalente ao transpirar.

[sublinhados acrescentados]