quinta-feira, 21 de setembro de 2023

«medo terrível da palavra dúbia»

      RECORTE(S):
     O patoá tinha sido a única língua dos meus avós. Há quem aprecie o «pitoresco do patoá» e do Francês popular. É assim que Proust encarava com enlevo as incorrecções e os vocábulos antiquados de Françoise. Somente lhe importava a estética, porque Françoise era sua criada e não sua mãe. A ele, nunca acudiu espontaneamente aos lábios esse tipo de linguagem.
    Para o meu pai, o patoá era algo velho e feio, um sinal de inferioridade. Orgulhava-se de ter podido desembaraçar-se dele em parte, ainda que o seu francês não fosse impecável, mas era francês. [...]
     Comunicativo no café, em família, diante das pessoas que falavam bem calava-se, ou interrompia-se a meio de uma frase e dizia «não é assim» ou apenas «não», com um gesto de mão para convidar a pessoa a compreender e prosseguir em vez dele. Falar sempre com precaução, um medo terrível da palavra dúbia, desse efeito tão pernicioso como dar um traque. [...]

Annie Ernaux,  Um lugar ao sol seguido de Uma mulher, 2022, p. 45