quinta-feira, 19 de julho de 2018

«Os Maias» - «vai chatear o Camões» OU «pequenino escândalo», ao 4.º Dia

- crónica mordaz de R. de C., no Expresso 

- o «4.º dia» em outra (também Mordaz) crónica, desta vez de Alberto Gonçalves

4º dia (da «Selva»)
Rebentou um pequeno escândalo porque “Os Maias” deixaram de ser leitura obrigatória no liceu. Meia dúzia de pontos. Primeiro, parece que a obra é facultativa desde 2002, prova de que a indignação, embora implacável, foi decidida com vagar. Segundo, é absurdo interromper a atenção das crianças em volta das novas tecnologias (publicar fotos no Instagram e assim) para maçá-las com formas de comunicação anacrónicas. Terceiro, ao que se vê por aí, a antiga obrigatoriedade de Eça não convenceu várias gerações de portugueses a escrever bom português, ou sequer a escrever português de todo. Quarto, se a criança for normalzinha, a conotação de um livro com a escola é suficiente para dedicar-lhe o tipo de afeição que se dedica à sarna, pelo que o currículo oficial deveria limitar-se a produtos oficiais, género Mia Couto e os novíssimos romancistas caseiros. Quinto, “Os Maias” são demasiado explícitos na chacota do pardieiro em que vivemos, o que naturalmente aborrece os donos do pardieiro e os leva a preferir autores “humanistas” como Manuel Alegre, as senhoras da colecção “Uma Aventura” e aquele mãe com minúscula. Sexto, a demonstração de que o liberalismo nacional vai longe está no facto de mesmo os liberais acharem que compete ao Estado escolher as leituras, os interesses e provavelmente os sapatos dos filhos. Sétimo, os indignados que vão chatear o Camões, fingindo que o lêem.
[sublinhados acrescentados]

[...] o argumento de que os jovens podem conhecer Eça de Queirós lendo outros romances (esses já são legíveis?) é bem engendrado, mas não convence. Os Maias são o mais extraordinário romance da literatura portuguesa e neles está quase tudo o que Eça de Queirós nos legou: um admirável retrato literário da sociedade portuguesa do século XIX, personagens (incluindo tipos sociais) que nenhuma outra obra da nossa literatura foi capaz de conceber, uma densa reflexão, em clave ficcional, acerca da história, dos seus acidentes e do modo como os homens os vivem, uma tematização do tempo e da morte, da decadência e da memória como valores e sentidos que são parte de nós, em qualquer idade ou época. [...] 

[...] Nele se cruza uma impiedosa pintura da sociedade portuguesa e dos seus tipos humanos e sociais com a história trágica de um amor incestuoso, símbolo do círculo fechado em que Carlos, Maria Eduarda e a família Maia estão encerrados, presos nas teias do destino. E a simbologia desse círculo fechado alarga-se ao país, encerrando as próprias elites protagonistas do romance num tempo parado, imobilista, gerador de uma experiência diletante de desencanto e desistência. Eça denuncia a impotência das elites sociais dominantes e vinga-se delas através da própria escrita irónica do romance e também da confusão auto-irónica de si mesmo com a personagem de Ega, o qual, dono da ironia, mostra o mundo na sua duplicidade trágica e cómica.
Só a arte, e dentro dela a grande literatura, capta a duplicidade complexa da realidade humana e social, permite um conhecimento alternativo do mundo, por isso não é dispensável e por isso é intensamente formativa.[...]

- a 14 de Agosto, A. Carlos Cortez, no Público; Recorte:
[...]Não dar aos alunos a hipótese de ler a obra-prima de Eça de Queirós é impedir o acesso dos jovens a um monumento literário em que a língua portuguesa atinge um alto grau de expressão estética.[...]