segunda-feira, 25 de março de 2024

«Tu, o mais abstracto dos pronomes,»; Júdice, Nuno

 EXERCÍCIO DE GRAMÁTICA

Tu, que 
os ventos percorrem
com os lábios
do horizonte,
e uma nuvem estranha cobre
com o lençol amargo 
da madrugada: dá-me
as tuas mãos, agora
que o teu nome se 
demora nos ouvidos da terra;
ou corre por esse rio
subterrâneo que desagua
no fundo
dos espelhos, de onde
nenhuma voz te chama.

Tu, o mais 
abstracto dos pronomes,
vestida com o fogo surdo
da última vogal, como
se uma sombra de silêncios
dançasse por entre
murmúrios e memórias; não
partas com o nascer do dia,
o sonho vago de um desejo,
ou a luz efémera com 
que te olhei.

Fica na tinta dos meus dedos,
resto de um verso, segredo
sem rosto; ou leva-me contigo,
limpo de reflexos e pronomes,
enquanto um rumor de fonte
me ensina a encontrar-te.

Nuno Júdice, O movimento do mundo (1996); transcrito de 50 anos de Poesia - Antologia pessoal, 2022, pp. 82-83